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“O Mindsetter @Nelio Tombini abordou o tema – Feminicídio e Doença Mental – em uma recente entrevista feita para a Agert, dentro de um evento no qual estava participando. “
Dada a relevância do tema em nossos dias e a maneira diferenciada que foi abordado, entendemos como muito interessante compartilhar com nossos leitores aqui a visão estabelecida pelo entrevistado, a qual permite uma análise abrangente e disruptiva sobre o tema.

Boa Leitura!

RELATÓRIO SOCIAL AGERT – Em seu artigo “O feminicídio e a doença mental”, publicado em 2019, o senhor afirma que pouca atenção tem sido dada ao papel da doença mental nos casos de feminicídio. Por que isso ocorre?   

DR. TOMBINI – Sou médico há 48 anos, trabalhei em muitas comunidades carentes e em hospitais de Porto Alegre, e na Santa Casa, com os pacientes do SUS. Não sou um psiquiatra de consultório somente. Fiz residência em cirurgia e trabalhei três anos no interior, onde fazia de tudo, e depois fiz formação em Psiquiatria. Tive muito trânsito com as doenças da alma. Todos nós temos potencial agressivo e, em algumas situações, nossa agressividade pode aumentar.  Mas há pessoas com transtornos mentais, que geralmente passam despercebidas na comunidade, na família e no local de trabalho. Esses transtornos mentais são determinantes para a conduta das pessoas. Um homem que agride a mulher tem uma série de conteúdos no seu imaginário que o levam à agressão. A agressão verbal é comum e de certa forma aceita em nossa sociedade, assim como a agressão não verbal, com gestos, olhares, mas quando chega à agressão física, e a uma mulher especificamente, até ao ponto de matá-la, evidentemente que isso não ocorre apenas por um problema de relacionamento. Existe aí uma ponto que não é explorado: a presença da doença mental. É possível perceber isso até pelo próprio curso da relação. O homem não sai com uma mulher num dia e a mata no mesmo dia. Em geral, a violência ocorre em relações mais duradouras. As pessoas já estão juntas há algum tempo. Quando uma pessoa adoece do ponto de vista mental há duas vertentes: uma delas é a doença de origem biológica, bioquímica, genética. É quando a pessoa já carrega essa bagagem. Dentro disso temos transtornos de humor (depressão e bipolaridade), paranoides e esquizofrenia, entre outros. A outra vertente se constitui nas patologias que trazem distúrbios decorrentes dos transtornos de personalidade. Neste último, além de alguma presença genética também há os fatores existenciais.  

RELATÓRIO SOCIAL AGERT – Em relação ao agressor, quais são os traços psicológicos e comportamentais mais recorrentes? Quais são os tipos de transtornos mentais e de personalidade mais comuns entre eles?   

DR. TOMBINI – Os transtornos de personalidade mais frequentes entre os agressores de mulheres é o transtorno paranoide, borderline e antissocial. O paranoide projeta seu mal-estar no outro. Ele tem ciúmes exagerado, é muito desconfiado, telefona para a mulher o tempo todo. Há o desejo de controlar a vida dela. Ela não tem vida. Determina tudo: a roupa que ela vai usar, como vai se pintar, com quem sairá. Se apresenta como o “salvador da pátria”, alguém que vai tomar conta desta companheira. Nossa sociedade tem preconceito em relação aos sofrimentos de origem psicológica ou psiquiátrica, mesmo os mais brandos.  Desqualifica as pessoas com problemas emocionais. Logo, tendemos a minimizá-los ou ignorá-los. Nos casos de violência contra a mulher não se pode descartar a presença de doença mental do homem. Estes agressores costumam sentir-se inseguros, frágeis, desvalorizados, desqualificados. Tentam se validar através dessa conquista, como se a mulher pudesse lhes dar algo que eles não têm. Às vezes são homens que apresentam dificuldades sexuais importantes. Tendem a colocar todas as suas frustações e limitações na conta da companheira. Se houver alguma recusa a um desejo deles, isso pode levar à agressividade. Este perfil relacional tem só um sentido: controlar a mulher, torná-la refém e fantoche. Tendem a projetar seu mal-estar na companheira e fantasiam se libertar daquele sofrimento doentio destruindo a mulher, que passou a ser depositária das coisas ruins deles.  Difícil se tornar feminicida em uma semana. Ele vai envolvendo e seduzindo sua parceira.  

RELATÓRIO SOCIAL AGERT – Em que medida o uso de substâncias como o álcool contribui para o agravamento do problema?   

DR. TOMBINI –É evidente que o uso do álcool é um fator desencadeante da agressividade. O alcoolismo é a mais grave das dependências químicas do ponto de vista da saúde pública. O alcoolista não se percebe doente e, portanto, não procura ajuda. É preciso salientar que maconha, cocaína, anfetaminas, ecstasy, por exemplo, também são fatores desencadeantes de violência. Para alguns homens, mesmo os não dependentes do álcool, poucas doses de bebidas alcoólicas podem funcionar como um gatilho para a agressão. Quantos de nós já nos expusemos a riscos depois de algumas taças ingeridas? O uso de substâncias químicas, por si só, já se caracteriza como um transtorno psiquiátrico e também potencializa a doença mental preexistente.   

RELATÓRIO SOCIAL AGERT – No seu artigo, o Sr. aborda a conexão entre a vítima e o agressor e afirma que muitas mulheres, embora venham sendo agredidas durante algum tempo, tendem a não compartilhar a situação em que vivem. Por que elas não denunciam seus agressores? Em que medida a baixa autoestima é uma causa disso? O que fazer a respeito?  

DR. TOMBINI – Esse é um ponto especialmente delicado. Tenho que tomar o cuidado de não parecer estar responsabilizando a mulher pela agressão a que foi submetida. Em grande parte dos casos, elas não denunciam porque ficam abatidas, envergonhadas e com medo da crítica. Também é possível que nesse estado de estresse intenso,  imaginem que possam fazer mais para acalmar o companheiro, como se culpadas fossem pelo que está ocorrendo. Revelar o sofrimento poderia ser o equivalente a serem condenadas publicamente, como se fossem coniventes e pactuassem com o agressor, como se denunciassem a elas mesmas.  Esses homens agressivos são manipuladores, demonstram controle da situação, seduzem com ideias de proteção, como, “eu vou cuidar de ti, não te faltará nada” etc. Na medida em que a relação evolui, o lado doente desses homens começa a emergir. Eles tendem a debitar na companheira a responsabilidade pelas brigas, como se  não estivessem entregando tudo o que eles “merecem”. Se a mulher se sente desvalorizada, com baixa autoestima, tenderá a achar que é responsável pela cobrança e a violência do parceiro. Esse seria o pior cenário: quando a mulher se sente culpada pela postura agressiva e se torna depositária da loucura do outro. Não é fácil sair da relação, porque, além dos vínculos emocionais, podem existir filhos menores e também dependência econômica, personalidade passivo-dependente ou quadros depressivos. Há outro risco inconsciente. Quando a mulher acha que conseguirá mudar esse sujeito doente, e, dessa forma, se sentiria capaz e valorizada. É difícil mudar o outro. Mesmo nós, psicoterapeutas, às vezes, temos dificuldades em mudar as percepções de nossos pacientes. Nessas relações, as mulheres adoecem junto. É difícil saírem dessas situações doentias sem um suporte psicológico ou da família.       

RELATÓRIO SOCIAL AGERT – O Sr. tem longa experiência na coordenação de psicoterapia de grupo a pacientes do SUS na Santa Casa de Porto Alegre.  De que maneira as psicoterapias de grupo para estes homens poderiam ajudar no combate à violência contra a mulher?  

DR. TOMBINI – Em termos de saúde pública, os grupos de apoio psicoterápico são a única maneira de se conseguir atender um número maior de pacientes. Para darmos conta de tantos pacientes na Santa Casa oferecíamos sessão semanal de terapia em grupo. Os pacientes vinham quando podiam. A sala comportava 50 participantes. Familiares também podiam participar.  No caso dos  agressores, teriam que ser avaliados por um psiquiatra para saber da necessidade de tomar alguma medicação. Acho fundamental a participação do Judiciário, ou seja, os participantes deveriam se apresentar mensalmente a um juiz levando comprovante de que estão se tratando regularmente, se estiverem em liberdade condicional, claro.  Penso que as mulheres também deveriam participar de grupoterapia para poderem ter mais intimidade com sua vida emocional e não correrem o risco de voltar para essas relações tóxicas. Quero enfatizar que em nenhum momento estou sugerindo que os agressores não devam ser punidos pelo força da lei. Essas minhas reflexões também não têm nenhum viés ideológico ou político.  

RELATÓRIO SOCIAL AGERT – O fato de vivermos em uma sociedade machista é apontado frequentemente como uma das razões estruturais da violência contra a mulher. De que maneira  isso pode se entrelaçar, culminando na prática do feminicídio?   

DR TOMBINI – Temos aqui um ponto muito importante. Se formos atribuir os feminicídios ao machismo muitos homens poderiam ser feminicidas em potencial.  Machismo não é suficiente para explicar o feminicídio. Machismo é querer que a mulher não trabalhe, determinar o que ela pode ou não fazer,  deixar o filho sair para a balada, mas a filha, não, etc. Colocar a causa da violência contra a mulher na conta do machismo seria dar uma autorização prévia à agressão. É muito perigoso pensar assim! Sim, a sociedade é machista, mas isso não justifica agredir as mulheres, como o feminicídio. A agressão é algo gravíssimo, ultrapassa limites, a margem. Nesse sentido, o agressor é um marginal que ultrapassou a margem e cometeu um crime. O machista não é um marginal. O machismo não é causa de agressão física. A doença mental,  pode ser.   

RELATÓRIO SOCIAL AGERT – A delegada Nadine Anflor  chefe de Polícia do Rio Grande do Sul, acredita que a divulgação dos feminicídios pode trazer, como consequência, um incentivo à prática desse crime, de forma semelhante ao que ocorre com os suicídios. Segundo ela, é importante divulgar casos de superação de situações de agressão e também as boas práticas encontradas nos estados e municípios, em vez de apenas a publicação de estatísticas. Qual sua opinião sobre isso?   

DR. TOMBINI – Esses temas parecem um tabu impregnado na sociedade. Eu me pergunto: por que os suicídios não são divulgados? Talvez até se pudesse divulgar o suicídio como forma de prevenir o suicídio! Talvez a sociedade não divulgue porque é difícil lidar com o tema. Podemos ter a sensação de que fomos incompetentes, de que a família fracassou quando alguém se matou. O perigo de não falar é negar a doença mental. O suicida e o feminicida são doentes. Precisam de tratamento.  Penso que os feminicídios deveriam  ser divulgados. A violência contra a mulher é uma chaga que precisa ser tratada. A divulgação pode levar  outras mulheres a procurarem ajuda. A violência é um assunto difícil, que a sociedade não quer discutir, até porque muitas das ditas “pessoas de bem” são agressivas nos seus espaços privados. Acho que temos que refletir sobre o porquê de não divulgar o feminicídios e o suicídio. Essa ideia também serve para a necessidade de se falar com as crianças sobre a pedofilia.  Esses agressores precisariam da mão pesada da justiça e de acompanhamento psiquiátrico. que ser tratados. É preciso drenar o abcesso. Voltando ao suicida. Eles não têm interlocutores. Quem está próximo quer se ver livre destas conversas, não quer realmente ouvir a pessoa sobre o que a está afligindo. Quando  os escuta, usa  frases sem sentido, como “isso vai passar”, “tens tudo”, “reza”, “faz um esporte”. São temas muito espinhosos sobre os quais a sociedade não quer falar.    

RELATÓRIO SOCIAL AGERT – Como os meios de comunicação podem contribuir para o enfrentamento e a redução dos casos de feminicídio?  De que forma as campanhas de conscientização podem ser instrumentos relevantes no combate à violência contra a mulher?   

DR. TOMBINI – Os meios de comunicação têm o poder de entrar na vida das pessoas sem pedir licença. É preciso que eles mostrem que o problema da violência contra a mulher é uma situação trágica, mas é preciso apresentar essa tragédia num contexto não só policial. Nesse aspecto, faço um paralelo com a pandemia de Covid-19 que estamos enfrentando. Acho que, de um modo geral, a mídia é pouco criativa nas suas abordagens sobre o problema. Tende a repetir que devemos ficar em casa, entrevistam muitos médicos, que dizem as mesmas coisas. Chega um momento em que as pessoas não absorvem as orientações. O feminicídio é algo sobre o que a sociedade precisa se debruçar. Há doença mental envolvida. O transgressor tem que ser preso, obviamente. Mas a sociedade não olha para os aspectos emocionais doentios. O feminicídio não pode ser divulgado apenas como notícia policial.  Só para lembrar, até há poucos anos, o alcoolista era tido como um mau elemento, um mau caráter, e podia ser despedido por justa causa. Hoje, a sociedade sabe que se trata de uma doença psiquiátrica grave. A sociedade tem que olhar mais para as doenças mentais, pois o descaso que temos em relação a elas faz com que tenhamos prejuízos sociais e econômicos impactantes. Mesmo as empresas privadas não dão atenção à vida emocional de seus colaboradores. Aqueles que adoecem costumam ser desligados. Espero que em algum momento exista uma passeata solicitando mais suporte público para as doenças mentais!   

Os autores dos artigos, vídeos e podcasts assumem inteira responsabilidade pelo conteúdo de sua autoria. A opinião destes não necessariamente expressa a linha editorial e a visão do Instituto Dynamic Mindset.

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